7.9.03

O Retorno
Em 6 de setembro comemorei 44 anos de idade. Era o momento de tornar registrado um pedaço da estória do meu pensamento. O registro da infancia. O descaminho após a separação. E o retorno. Lento. Leve. Mas definitivo. Uma festa de aniversário que a vida me preparou e tem me oferecido com graça. O Retorno não é um poema. É um relato. E, mais do que um relato, é uma reverecia à vida a que retorno e que retorna à mim. Navegar é preciso. Viver não é preciso. Retornar é estar de volta ao paraiso.

I
De onde eu vim era frio.
O vento assoviava uma canção ruim.
As cores eram cinzentas.
As vozes odientas,
As ruas eram toscas de onde eu vim.
O ar cheirava a ozena.
De onde eu vim não havia nenhum poema,
Nenhum alento.
De onde eu vim morava o pensamento
Estranho.
Vinagre era água de banho
E era a mesma água que tinha pra beber.
Era um lugar chamado desprazer
Onde comida era resto.
De aspecto abominável feito o incesto.
E não havia boa companhia no lugar de onde eu vim.
Só gente estranha. Gente disfarçada.
Maledicente, mal-intencionada,
Interesseira e desinteressada...
A ingratidão era a marca registrada.
Ninguém sorria pra mim.
A figueira era seca. Não frutificava.
A dracma, perdida.
A idéia era fragil. Não se sustentava
E a vida parecia não ter vida.
O vento ali não soprava
O fogo nem aquecia.
O sono jamais descansava.
A comida não alimentava quem comia.
E feito a morte quando não avisa,
E feito o câncer que não se anuncia,
Também a escuridão, lá de onde eu vim, não se anunciava.
Simplesmente se aproximava
E me abraçava
Como se fosse grande amiga minha.
Mas era só maçã envenenada.
Bruxa na pele de fada,
De olhar tranqüilo e aparência mansinha.
Mas era como a pele infectada
Disseminando a doença obscura
E sem cura
Do desespero...
E se divertia...
O desespero alheio, sua alegria.
E assim era a escuridão quando ela vinha...
Estúpida, insensível, erva daninha...
Covarde, fria, seca, podre, ruim...
E assim era o lugar de onde eu vim...
II
Mas de onde eu vim não era o meu lugar
Nem minha casa ou meu ninho...
Foi por descuidos e descaminhos
Pisando em flores, colhendo espinhos,
Feito uma nau perdida em alto mar,
Plantando estupidez, colhendo enganos,
Somando perdas, coletando danos,
Feito uma embarcação a naufragar.
Foi desse modo que eu fui parar
Nesse lugar que não me pertencia
E nem à minha vida e a meu destino.
Foi tão somente onde eu cheguei um dia
Por desacerto meu. Por desatino.
Não era meu lugar, mas de onde eu vim.
Fazia frio. Era um lugar ruim
Aonde eu cheguei quando eu perdi meu sim...
Onde eu quase morri...
Mas não era o lugar onde eu nasci
III
Onde eu nasci tinha musica, poesia,
Amor de pai e mãe, nome de irmão.
Um violão dedilhava a canção que eu escolhia
E um professor me ensinava a tocar violão.
Onde eu nasci tinha comida que satisfazia,
Tinha um quintal do tamanho da imaginação,
Tinha vovó Maria,
Bolas de gude só por distração,
E tinha as coisas erradas que eu fazia,
Pecados que de tão tolos já nem são...
Onde eu nasci tinha afeto.
Tinha o pai sempre por perto.
Beijo na testa. Aperto de mão.
Eu tinha casa boa de morar.
Brinquedo bom pra brincar.
Roupa lavada. Café com pão.
Tinha descanso e suporte,
Escudo e escora,
Ensinamentos da vida além da morte.
Lições de vida pela vida afora.
Eu tinha um quarto pra descansar.
Tudo de bom para acontecer.
E muitas musicas pra cantar.
E vários versos pra se escrever.
E quando o tempo fechava
E a noite absurda
Era a anunciação do temporal,
Havia a proteção que não faltava,
O aconchego, o colo, o braço, a mão...
A boa palavra
Que não chegava impondo condição...
E mesmo quando a dor era mais forte
Havia alento,
Refazimento,
Havia ungüento pra dor do mal...
Onde eu nasci era assim:
Repouso e pasto,
Caminho longo ao sol, porem seguro.
Havia o mundo, mundo, vasto mundo... Vasto.
Que eu observava de cima do meu muro.
Um muro alto que me protegia...
Um muro imenso que me preservava
Das tempestades de hipocrisia,
Do mau juízo, da má palavra...
E ali de cima do alto do meu muro
Que era como se fosse um pai pra mim
Eu respirava ar puro...
Onde eu nasci era assim...
IV
Mas
Um dia quando tudo deu errado
E nesse dia eu descuidei de mim
Eu fui, feito um cartão extraviado,
Desembocar nos rumos de onde eu vim...
Um dia, feito um rio extravasado,
Um dia, feito um temporal ruim,
Ruim feito um feitiço encomendado,
Ruim feito a crueldade que é sem fim,
Um dia, quando tudo foi quebrado,
Ou quase tudo, melhor assim,
Eu capotei... Cai desacordado...
Tive o meu rosto inteiro deformado...
Meu santuário usurpado...
Um dia, quando tudo deu errado...
Um dia, quando eu descuidei de mim...
V
Hoje
Há os que julgam que eu nunca fui.
Há os que acreditam que eu não voltarei.
Há ainda os que estão certos de que eu sou
Do lugar pra onde eu fui quando eu nem sei
Por que motivos, com que interesses,
Quando eu morri, quando eu me descuidei...
E ha os que me enxergam tão perdido
Que quase não conseguem acreditar
Que eu resolvi voltar pra minha casa...
Que eu tenho rumo e pernas de voltar...
Há os que me evitam,
Os que me procuram,
E os que só se aproximam pra roubar
Não a moeda, a vida...
Não o sonho...
Mas a capacidade de sonhar...
Ha os que sabem,
Os que nem supõem,
Os que se negam a acreditar...
Os que criticam,
Os que observam,
E há os que não sabem disfarçar:
Condenam,
Executam,
Discriminam
E cobram mesmo sem ter o que cobrar...
Enganam mesmo sem nenhum motivo,
Escondem sem ter coisa pra ocultar.
E mentem mesmo sem necessidade.
E falam coisas de não se falar.
Gentes...
Inúmeras pessoas.
Muita gente.
Quase impossível pra mim determinar
Tudo que falam,
Tudo que pensam,
Tudo que teimam em acreditar...
VI
Enquanto eu sigo o rumo do retorno
E cruzo pontes e matas e quebradas
E varo dias, e cruzo noites,
E passo acordado as madrugadas,

Enquanto eu varo noites sem sono
Cujo único objetivo é o de chegar
Eu cruzo gentes pelo caminho...
Como é imenso o meu caminhar...

É o retorno à casa tão distante.
Retorno imprescindível e impressionante.
É meu caminho de volta ao lar

Onde ao chegar eu estarei cansado
Porem imensamente gratificado
Por ter conseguido chegar.
VII
Retorno.
Já posso ouvir a musica ao longe.
O som da casa que há muito deixei.
A arvore é a mesma. O cachorro
Acho que não. Talvez. Sei lá. Não sei.
Retorno.
Conheço, eu imagino, alguns olhares.
Algumas vozes. Lembro do portão.
Parece o mesmo. A rua, a mesma.
Acho que eu fui o único fujão.
Retorno.
Não tenho outra saída.
Definitivamente nenhuma outra razão:
Voltar somente. Retomar a vida.
Porque insistir andar na contramão?
Retorno.
É minha estória. Não tenho medo
É meu caminho. Parece minha canção:
Pra você ver: eu to voltando pra casa.
I wanna hold your hand. Me de a mão.
Retorno.
E não me esqueço da poesia.
Minha companhia de aflição.
Amou comigo. Sofreu comigo.
E não me impôs nenhuma condição.
Retorno.
As coisas não saíram do lugar.
Estavam exatamente onde ainda estão.
Retorno. É minha vida. É meu legado.
Minha alforria. Minha absolvição.
Retorno.
Deixo pra trás pecados e desvios.
A poeira nos sapatos. E a lição:
Partir diariamente. Seguir longe.
Voar em desvarios absurdos.
Atravessar descampados
E mares nunca dantes navegados
Mas não deixar morrer o coração
Que sempre volta. Mais cedo. Mais tarde.
Silenciosamente. Ou com alarde.
Surpreendendo quase sempre ou não.
Retorno.
A musica ao longe. A casa. A trilha.
O cão que já faz parte da família.
A minha mãe. Minha irmã. Meus dois irmãos.
E a criançada.
Meu Deus. Como essa turma ta levada.
Meu Deus. Quem me segura essa emoção.
Retorno.
Não há caminho mais verdadeiro.
Nada desviará minha atenção.
Coisa nenhuma. Nenhum dinheiro.
Nenhuma rota de distração.
Retorno.
É meu triunfo. E única ambição.
De volta à casa. Meu pouso certo.
Eu nunca estive tão perto.
Eu nunca andei com tanta determinação.
É minha casa. Discos. Livros. Poesias.
Os restos intocados dos meus dias.
Parece ate que estou nessa canção:
Eu tou voltando pra casa.
Nada me atrasa
Nada me faz perder a condução.
Tudo é igual
Ou parecido
Ou quase tudo
O cachorrinho não.
Retorno.
Trago na minha idéia uma canção.
E mil poemas de felicidade.
Eu tou voltando pra imortalidade.
Eu tou voltando pro meu coração.

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