A chave da felicidade
(carta à minha amiga Vanessa)
Anjo,
Li tua carta.
Recebi tua pergunta:
...se alguém pode ser tipo "responsável" por nossa felicidade...
Percebi, por tras dessa frase, um tom aflito.
Uma sede de resposta.
Hoje, revendo tuas observaçoes a respeito de tuas conversas com tuas colegas de estudo, posso reafirmar com a certeza que meu coração me gritä: Vanessa. É dado a cada um, de modo intransferivel e definitivo, a chave da própria felicidade.
E não há atenuantes para essa lei.
Disposições em contrário foram revogadas.
Sobrou o homem e a responsabilidade imensa que ele mesmo tem de se fazer feliz.
Nunca te apaixonaste de verdade?
Gostas de sofrer?
Te entregas inteira?
És impassivel feito pedra?
Fria feito o frio da noite de inverno de Campos do Jordão?
Quente feito o verão de Pernambuco na beira da praia de Boa Viagem?
Cearense? Paraibana? Pernambucana?
Iraquiana? Americana?
Preta? Branca? Amarela? Albina? És ariana?
Não importa.
A lei impassivel de falhas e que não admite acordos te diz:
Vanessa...
És a unica responsável por sua própria felicidade.
Pelo simples motivo que esta felicidade é o ponto de sua chegada.
O objetivo de sua vida.
Como a planta busca o sol, ainda que não julgue, compreenda ou mesmo saiba, e apenas busca, também assim buscas ser feliz.
Apaixonada pelo carinho do homem que amas?
Julgas por isso estar entregando a ele a chave de teu ser feliz, porque é a presença dele que te faz sorrir e é a distancia dele o que te faz perder o sorriso e empalidecer sua cor?
É por isso que presumes estar entregando a ele a tua chavinha de ser feliz?
Tolice.
As tuas amigas, em treinamento para a profissão de médico, que mais que uma profissão, é um modo de vida, um treinamento da alma, estão incorrendo num erro primário, Vanessa.
Confundir o sinal com a doença.
Desprezar o diagnóstico diferencial so porque associaram os sintomas ao primeiro quadro que imaginaram, ao imediato que conheciam...
Cuidado, anjo.
Um dia em minha vida também entreguei todo amor que havia em mim a quem, por cansaço, por tédio ou por falta de sede ou sede de outros mares, o desprezou.
Esse desprezo me conduziu quase ao meu fim.
Ao poço do fundo do oco de mim.
No dia, em que percebi que não morreria, sobrevivi.
Pode se dizer, de modo superficial, que transferi por muito tempo a responsabilidade da minha felicidade a quem amei e entreguei meu amor...
E que a perda daquele carinho me roubou a paz.
Pode se dizer isso.
E se dizendo assim, acabar compreendendo somente a metade.
Mas exames detalhados e mais apurados são capazes de mostrar, ao invés disso, uma alma que, por imperfeita, presumiu a entrega como saida.
Julgou ter entregue a chave da felicidade a dominio alheio .
Julgou ter encontrado seu caminho de felicidade indizivel.
Quando um dia, por descuido ou falta de poesia, a chave presumidamente entregue tornou-se chave jogada fora por quem presumidamente a recebeu e se cansou de guardar e tomar conta, então, nesse dia, descobri-me, embora assustado e quase sem saber acreditar, ainda de posse dela, da chave da minha felicidade.
Guardada em mim.
No fundo da alma.
Quase escondida sob lembranças e coisas quase esquecidas.
Palavras quase já nem faladas.
Ela, a chave, estava ali.
Era minha.
Ainda.
Inteira.
Onde a entrega?
Onde o dominio da sua posse passado?
A aparente transferencia da chave da felicidade para outro era só a aparencia.
Já aprendeste que o tamanho do sopro não significa o tamanho da lesão cardiaca?
Já aprendeste que um dos comemorativos da difteria é a dissociação incomum entre o pulso e a temperatura?
Já aprendeste que lingua geográfica e mancha mongólica assustam mas não sao doença?
Já aprendeste que um simples impetigo pode ferir mortalmente o rim?
Já aprendeste que um corte na lingua imenso pode sangrar assustadoramente e cura sozinho e não se sutura?
Aprender tudo isso não te faz pensar que o todo é maior que a parte?
Compreender que o todo é maior que a parte não te faz aceitar que a aparente entrega é só o desejo dela?
Que quando se diz: fulano me faz feliz e eu não seria nada se não fosse ele na verdade o que esta ocorrendo é uma imensa sensação e desejo de que isso seja verdadeiramente verdade?
Entrega-te, Vanessa.
Guarda-te.
Apaixona-te desesperadamente.
Torna-te dependente absoluta do homem que amas.
Ou simplesmente brinque com a paixão encantadora dos tolos a teus pés.
Vive do teu modo.
Do modo como te pede a razão ou te chama o coração.
Mas nunca te esqueças, anjo.
Ainda que infelizmente.
Ainda que: _ Que Pena!
A tua e a minha felicidade são coisa de nosso dominio.
Definitivo.
Pessoal.
Intransferivel.
E ainda que o entregues.
E te entregues.
E te des.
Fiel a toda prova.
Ainda assim
Restará dentro de ti.
Num canto guardado da tua alma.
Num gesto intocado do teu pensamento.
Na beira de tua idéia.
Na semente de ti,
Ela.
A chave.
Da tua felicidade.
E descobrirás nesse dia
Que ela nunca se foi.
Esteve sempre contigo.
E serás, então, dessa vez, ainda que unicamente dessa vez, verdadeiramente então feliz.
Beijo.
O amigo,
Luis.
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