21.12.13

O Pai Compassivo

 I

A casa de meu pai

 

A casa de meu pai: apoio e abrigo,
Abrigo e cuidado, cuidado e acolhimento,
Proteção contra toda sorte de perigo,
Alivio para todo desconforto e sofrimento...
 
A casa de meu pai, meu bom amigo,
Meu conselheiro para todo momento,
Meu mapa de separar o joio do trigo,
Minha respiração, meu alimento...
 
A casa de meu pai, a brisa, a vinha,
A que também era a casa que era minha,
E mais do que minha casa, minha escora,
 
A casa de meu pai, minha garantia,
A casa que deixei para trás um dia,
Em que sem olhar para trás eu fui-me embora...
 
II
A partida

Meu pai, dá-me parte dos bens que me toca, eu pedi,
Dá-me parte, eu pedi, e meu pai me atendeu,
Dá-me parte dos bens, eu vou partir,
E meu pai me entregou o que chamei de meu...
 
Não tentou, o meu pai, me fazer desistir,
Não tentou me diminuir, não se escondeu,
Repartiu o que tinha e me deixou seguir,
E o que eu pedi a meu pai, meu pai me deu...
 
E assim, nesse dia, abastecido
Da minha parte que eu havia recebido,
Foi que eu deixei para trás a casa de meu pai,
 
Que me atendeu, quem sabe, inconformado,
E me viu partir com minha parte e meu pecado,
E seguir pra onde o pecado chama e vai...
 
III
A gastança
 
Longe de casa, num país distante,
Após dias e dias viajando,
Tudo me parecia interessante,
E de casa coisa que eu via ia gostando...
 
E, fascinado por aqueles dias,
Tudo se me apresentava impressionante:
As casas, as coisas, as companhias,
As experiências desconcertantes,
 
E como fossem dias sem limites,
Sem regras ou normas para obedecer,
Eu fui aceitando, aqui e ali, convites,
E as coisas começaram a acontecer:
 
Os bens que eu trouxe comigo fui gastando
Com coisas, gentes e lugares sem pensar,
Eu ia me divertindo e ia gostando,
E quanto mais eu gastava mais queria gastar
 
Com hábitos, com roupas, coisas divertidas,
O mundo parecia feito só para mim,
Experiências até então para mim desconhecidas,
Um mundo diferente do mundo de onde eu vim.
 
Foi quando então, nesse país distante,
A grande fome chegou, sem que eu notasse,
Arrastando esse longínquo viajante
Como se me consumisse e me secasse,
 
E nessa hora, sem que eu percebesse,
Eu já não tinha mais bens para gastar,
Eu não evitei que isso acontecesse,
Estava ali, muito longe do meu lar...
 
E as coisas e os dias de fartura e as gentes,
Como num passe de mágica, sumiram,
E os novos dias chegaram diferentes,
E foram de dor os dias que se seguiram...
 
E as experiências que me aconteceram,
Amigos que me pareciam tão reais,
Da mesma forma que vieram, desapareceram,
Deixando as festas para nunca mais...
 
E desde ali nunca mais os rostos novos,
E desde ali nunca mais festas e vinhos,
As roupas, as comidas, os convites, os jogos,
E desde ali, definitivamente, outros caminhos...
 
IV
A miséria
 
Vieram os dias difíceis,
De não ter o que comer,
De não ter o que vestir,
De não ter o que beber,
 
Os dias de dor imensa,
Os dias de danação,
De mal estar, de doença,
De frio, de solidão,
 
Os dias de gosto azedo,
Os dias de desamor,
Da morte em vida, do medo,
Da vida feita de dor,
 
Vieram os dias de fome,
Vieram os dias sem pão,
De comer o que um porco come,
Repartindo o mesmo chão,
 
Exalando o mesmo cheiro,
Dormindo no mesmo lixo,
Valendo o mesmo dinheiro,
Parecendo o mesmo bicho,
 
Vieram os dias escuros,
Os dias de dor, mais nada,
Dias longos, dias duros,
Da alma cair, cansada,
 
Da alma desesperada,
Da alma morta de dor,
Da alma mortalizada,
Os dias de acre sabor...
 
Foi quando nessa hora, em desespero,
E por absoluta falta de opção,
Fechei meus olhos,
E sem pensar em mais nada,
Ouvi a voz do meu coração...
 
V
A culpa
 
E nessa hora eu decidi retornar,
Permanecer daquele modo era um pouco morrer,
Foi assim que eu encontrei forças para recomeçar,
Foi assim que eu encontrei forças para entender
 
Que eu pequei contra Deus, eu sei, sem hesitar,
E diante de meu pai, e isso me fez sofrer,
E foi necessário eu sofrer para eu me encontrar,
E eu me encontrar para eu me arrepender...
 
Entendi que não era mais digno de ser chamado
De filho do meu pai por ter pecado,
E que era preciso, ainda assim, voltar,
 
Se não como um filho, como um empregado,
E receber novamente de meu pai seu cuidado,
Seu calor, seu carinho e as bênçãos do seu lar...
 
VI
O retorno
 
Assim,
Comecei minha longa viagem de volta
Deixando para trás aqueles tristes dias,
E fui levando comigo quase nada
Além da alma cansada, machucada,
Arrependida, e minhas mãos vazias.
 
E a longa viagem de volta, solitária,
Era a viagem de volta para o meu inicio,
E a cada passo crescia a ansiedade,
E agora o que mais me doía era a saudade...
Partir ou retornar: o que era mais difícil?
 
E eu vinha, ainda longe e bem distante,
Quando meu pai me viu e se encheu de compaixão,
E veio até a mim, meu pai, correndo,
E me beijou, e me abraçou, me recebendo,
E me acolhendo com seu coração.
 
Não me pediu que eu explicasse nada,
Não exigiu que eu implorasse o seu perdão,
Mas antes mesmo que eu o visse, ele, me vendo,
Alegrou seu coração, compreendendo,
No meu retorno a minha condição.
 
Foi quando eu disse:
Pai
Pequei contra o Céu e diante de ti.
Já não sou digno de ser chamado teu filho.
 
E como se ele não me escutasse,
Ou como se escutasse e não devesse,
Ou como quem simplesmente me interrompesse
E não me ouvisse,
Ordenou a seus servos que trouxessem
A melhor roupa e imediatamente me vestissem,
E me pusessem
Anéis nos dedos,
Sandálias nos pés,
E preparassem
O novilho cevado,
E que comêssemos,
E que regozijássemos,
Porque seu filho
Estava morto e viveu,
Estava perdido esse filho
E foi achado...
Então todos se alegraram,
E dançaram,
E sorriram,
E todos naquela hora festejaram,
E todos naquela hora cantaram,
E todos naquela hora comeram,
E todos naquela hora sorriram...
 
Mas ainda assim eu sabia,
E olhando para o meu pai, me repetia:
Eu pequei contra o céu e diante de ti e não sou digno de ser chamado teu filho,
Por ter pecado,
Por ter partido,
Por ter errado
E justamente por isso, ter sofrido,
Por ter abandonado a casa do meu pai,
Por conta disso quase me destruído,
Por ter deixado o apoio do meu lado
Pra tomar um caminho por mim mesmo escolhido...
 
E ainda hoje
Apesar do retorno,
Apesar da mudança,
Apesar do perdão,
Apesar do meu pai,
Homem bom, compassivo,
E apesar do tamanho
Da tua compaixão,
Ainda hoje
Essas palavras acompanham minha vida
Como uma frase nunca esquecida,
Como se fossem para minha vida um estribilho:
Pai, eu pequei contra o céu e diante de ti e não sou digno de ser chamado teu filho...
 
 
VII
O meu irmão
 
Algum tempo depois,
O meu irmão chegando
Em casa após passar o dia trabalhando,
Ao perceber que eu havia retornado
E por isso a festa que meu pai estava dando,
Ficou indignado,
E não queria entrar em casa, contrariado,
E disse ao meu pai em tom bastante magoado:
 
Permaneci do seu lado,
Não me afastei de sua companhia,
Dei duro, trabalhei sério e pesado,
Dedicando meu tempo ao trabalho dia a dia,
Nenhuma ordem sua eu transgredi,
Bem antes disso, obedeci e servi,
E quase que nem acredito,
Nunca ganhei nem a carne de um cabrito,
Nem alegria
Ou comemoração,
Enquanto esse meu irmão mais novo desajuizado,
Depois de ter se comportado tão errado,
Depois de ter se afastado,
Sumido,
Pecado,
Esse irmão descuidado recebe uma festa,
Com musica e dança e o novilho cevado...
 
E dizendo isso, calou-se, decepcionado...
 
E meu pai,
Sempre sereno e com convicção
Respondeu dessa forma ao meu irmão:
 
Filho,
Estás comigo,
Tudo o que é meu é teu,
O alimento,
O conforto,
A casa,
O campo,
A musica,
A alegria,
Tudo que é meu, acredite,
Até mesmo o novilho cevado que morreu,
Mas teu irmão,
Ele não,
Teu irmão estava morto e reviveu,
Teu irmão estava perdido e foi achado,
Teu irmão desgarrado se arrependeu,
E agora já não está mais desgarrado,
Tudo que eu tenho, meu filho, é teu,
E nada do que é teu te foi tomado,
Mas teu irmão estava morto e reviveu,
Teu irmão estava perdido e foi achado...
 
VIII
O que aprendi
 
Mais certo que o fundo do poço é o reinicio,
Maior do que a estupidez humana é o amor do pai,
Mais importante que a queda é o recomeço,
Mais forte que o pecado é a compaixão,
 
Mais firme que o medo será sempre a luz,
Que o desespero, sempre a esperança,
Maior que a perdição é o mapa do caminho,
Mais certo que a dor, a reparação...
 
Mais forte que a insensatez e que o pecado,
Que o desrespeito, o erro, o desalinho,
A treva, a obscuridade, a danação,
 
Mais forte é o amor do pai quando perdoa,
Mais forte é a força do perdão do pai que ama,
O pai compassivo transbordando compaixão...

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