26.1.02

Eu escrevi poesia
Ao reler poemas escritos num tempo de crise...

Um dia
Quando era enorme a dor que me envolvia
E absurda a dor, desconcertante,
Extravagante feito hemorragia,
Dor incomodamente duradoura,
Inconveniente, má, dilacerante,
E imponente, impositora e fria...
Assim, como a metástase invasora...
Assim, como é a septicemia,
Então
Foi nessa hora, quando tudo ruía,
E a minha alma caia de cansada,
Foi que eu busquei, quando mais nada havia
Senão cansaço e exaustão, mais nada,
Daonde a foz do rio nem nascia,
Daonde a água da fonte nem brotava,
Como se fosse o mar quando esvazia,
Como se fosse um ar que sufocava,
E a noite quando sobrevive ao dia ,
E a luz que pouco a pouco se apagava,
Foi nessa hora
Quase vazada, incomum, quase vazia,
Que eu busquei, com a luz que me restava
E com o resto de paz que eu possuia,
A fonte da palavra impregnada
De energia.
E tendo a solidão por companhia
Tornei-me companheiro da palavra,
Tornei-me um confessor, quando escrevia,
Tornei-me um pecador que não pecava,
Um aprendiz que desobedecia,
Porque tentava e não se contentava...
Buscava sempre e não se repetia,
E tudo que eu fazia e que eu buscava,
E que eu imaginava e que eu dizia,
Era como se o sonho que eu sonhava
(E a dor que havia em mim não atingia)
Usando a minha mão se transformava
Em poesia...
Ali, exatamente nesse instante,
Eu escrevia como quem passeia
Como quem vai veloz e segue adiante
Sem se importar com a morte que rodeia...
Eu escrevia como quem escapa
E como quem mergulha no oceano
Sem perceber a morte que maltrata
E nem o sofrimento desumano.
Eu escrevia como num mergulho
Que não me permitia perceber
A morte que fazia seu barulho
Tentando me levar para morrer...
Eu escrevi poesia.
E sem que eu percebesse, eu me salvava
Na hora em que a palavra se escrevia.
Como se fosse letra salvadora,
O garroteamento da sangria,
O indulto para a alma pecadora,
A fonte de calor na noite fria.
Eu não sabia.
Eu não imaginava ou percebia,
Mas era exatamente o que ocorria.
E hoje, lendo ritmos e rimas
Escritos nestes dias muito maus
Um tempo de intenções quase assassinas,
O meu apocalipse, o meu caos,
Eu hoje compreendo que a poesia,
Com ritmo ou sem som, cheia ou vazia,
Foi como a mão do pai na mão do filho,
Foi como o leite materno,
Foi mais do que um atalho, foi um trilho
A me mostrar como escapar do inferno.
E como a anestesia da morfina
Que faz a dor perder o seu efeito,
Também a poesia e a sua rima
Silenciaram, dentro do meu peito,
A coisa ruim em mim que me roia,
A dor que destruía meu juízo...
E sem que eu percebesse eu escrevia
Como quem redescobre o seu sorriso...
Um dia
Quando era grave a dor que me envolvia
Sem que eu me desse conta, eu não morria...
Eu escrevi poesia...

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