Prá não dizer que não falei de coisa alguma na hora da despedida.
Em novembro de 2002 deixei a Santa Casa de Misericórdia de Campos apos 16 anos de trabalho como médico plantonista. Durante esse período exerci também as funções de Chefe de Serviço de Pediatria, Assessor da Direção Clínica e Definidor.
Santa Casa, eu vou-me embora dos seus corredores.
Nunca mais frequentarei as suas enfermarias.
Nunca mais meus desatinos nem seus dissabores.
Nunca mais meus prematuros, suas pneumonias.
Vou-me embora, Santa Casa, das suas escadas.
Dos seus caminhos, meia noite, silenciosos.
Nunca mais suas intermináveis madrugadas.
Nunca mais no pátio os muitos gatos preguiçosos.
Nunca mais a lentidão dos seus elevadores.
Nunca mais a subserviência dos seus funcionários.
Nunca mais a impaciência dos seus Diretores.
Nunca mais a longa espera pelos seus salários.
Nunca mais a hiperplasia dos seus Provedores
E a inoperância do seu Definitório.
Nunca mais a inaceitável lista de favores
Que são cobrados no consultório.
Nunca mais as reuniões do seu Centro de Estudos.
Nunca mais as assembléias livres, soberanas,
Derrubando Provedores, corrigindo absurdos.
Enfrentando as normas toscas e levianas.
Nunca mais seu Estatuto, folha ultrapassada,
Autoritária, doente, obsoleta.
Palavra cheia de si, mas condenada
Pelo veneno imbecil da própria letra.
Nem a Roda dos Expostos de tantas estórias,
Nem os velhos quadros do tempo do Império.
Nem seus Barões de nomes e de glórias
Que hoje enfeitam o cemitério.
Vou-me embora, Santa Casa. Em paz.
Bebi seu fel. Provei da sua luz.
Talvez lembranças, por nunca mais
Seus prematuros, meus cangurus,
Suas crianças, meu aprendizado,
Sua miséria, minha tolerancia.
Talvez vontade de ter arriscado.
Talvez, em nome da sua infancia.
Eu vou e levo comigo tanta gente.
Que de hoje em diante chamarei: saudade.
Eu vou-me embora, tranquilamente,
Porque não cometi iniquidade.
Não fiz dinheiro do seu sofrimento.
Não me prevaleci da dor alheia.
Não fiz motivos de arrependimento
Porque eu não te trai na Ultima Ceia.
Eu vou-me embora certo da partida:
Não há retorno para a correnteza.
Eu vou-me embora sem despedida.
Não deixo carta alguma sobre a mesa.
E assim como num dia triste e escuro,
Em sua maca o meu pai morria,
Talvez eu volte, quem sabe, num futuro,
A ver de perto sua Enfermaria.
Mas nesse dia não trarei risada
Serei ali o resto que há de vida.
Talvez eu volte, casca agonizada,
Somente para a nossa despedida.
Como meu pai, talvez eu volte um dia,
Mas sem reconhecer ninguém nem nada.
Talvez eu torne à sua companhia
Talvez, antes da hora imaginada...
Santa Casa, eu vou-me embora das suas memórias.
Não deixo sombra, nem resto, nem nada.
Não farei parte mais das suas estórias,
Como quem segue a luz da própria estrada.
Por isso nunca mais o pensamento.
Por isso nunca mais o coração.
Não há nada mais forte do que o tempo
Não há nada mais frágil que a emoção.
Por isso, Santa Casa, a despedida.
Sem desencanto. Sem desalento.
Que Deus proteja e guarde a sua vida
E amenize o seu sofrimento.
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