26.2.02

O Coração
Poema virtual em quatro partes



1. Do Nome do Nick.

Eu não me lembro: era Rosa...
Ou Azulzinha... ou Grená...
Ou Caladinha... ou Dengosa...
M a fim de namorar...
Era Diabinha? Era Santa?
Pecadora? Bruxa? Má?
Era Só Minha? Só Sua?
Ou era Estrela do Mar?
Talvez fosse Namorada...
Moça querendo casar...
Moreninha... Apaixonada...
Como é que eu vou me lembrar?
Polyana? Ju? Marina?
Dany? Camila? Pilar?
Cíntia? Flávia? Carolina?
Paty? Paula? Norimar?
Forrozeira? Patricinha?
Fazendeira? Professora?
Saideira? Saidinha?
Saradinha? Salvadora?
Eu não me lembro direito
Do nick que o nome usava,
Do nick que o nome tinha,
De como se apresentava...
Sei que era maior que o nome
Que no nick se ocultava:
O nome sentia a fome
E o nick se alimentava,
O nome queria ver
Mas era o nick que olhava,
O nick sentia o cheiro
Sempre que o nome cheirava,
Porque o nome adormecia
Sempre que o nick acordava,
Como quando nasce o dia
Assim que a noite se acaba.
O nome que usava o nick
Por certo se aproveitava
De tudo que o nick era,
Das coisas que o nick usava,
O nome que usava o nick
No nick se transformava.
Agora o nome era o nome
Do nick que o nome usava.


2. Das coisas que o nick dizia


Enquanto teclava
Contava:
Era loura, era alta, era posuda,
Sozinha por opção,
Tinha uma boca carnuda,
E uns olhos claros,
Tinha cabelos longos e cacheados,
E alguns desenhos estranhos pintados
Nas unhas da mão...
Ou talvez tenha dito:
Morena,
Com quase um metro e oitenta,
Dançarina,
Extrovertida...
Cabelos longos e lisos,
Namoradeira demais,
Levada feito pimenta,
Moleca feito menina,
E outras vezes atrevida,
Muitas vezes sem juizo,
Mas sempre com muito gás...
Tinha vinte ou qualquer coisa parecida,
Fazia curso pré-vestibular,
Planejou cursar biologia,
Namorou a engenharia,
Ela só não pensava em se casar...
Falava inglês,
Algumas coisas em russo,
Outras tantas palavras em alemão...
Conheceu a Patagônia,
Já fez planos de viajar pra Cisjordania,
Conhecer a Amazônia,
E dançar reggae ao sol do Maranhão...
Ou talvez tenha dito: quase trinta...
Ou mesmo quase quarenta?
Pantera sedutora que se pinta...
Loba devoradora piruenta...
Extravagante
Muito caprichosa
Sofisticada
Farta de perfumes
E ouros espalhados pela mão...
Exuberante
Ar de poderosa
E desejada
Por nicks e nomes
De homens...
Ela era assim: total satisfação...
E enquanto teclava,
Contava:
Dinheiro tinha, mas nem precisava...
Amores muitos, mas não se detinha...
Fazia só as coisas que gostava...
E tudo quanto ela queria, tinha...
Maliciosa sempre que teclava,
Era desajuizada, irreverente...
Às vezes não dizia... insinuava...
E sempre assim... convidativamente...
E me dizia
Que não gostava de poesia
Não escutava samba e nem pagode,
Preferia os homens altos, tipos Lord...
E quase se derretia
Por outros fortes, louros, de bigode...
Era capaz de fazer quase tudo
Mesmo que fosse só por quase nada...
Entrava nos canais mais absurdos...
Adorava teclar de madrugada...
Usava sempre o mesmo sexy nick,
Mas muitas vezes criava algum na hora...
Mantinha sempre a coerência e o pique...
Não conhecia a hora de ir embora...
Carla? Cristal? Cristininha?
Carismática? Coroa?
Popozuda? Tchutchuquinha?
Delicinha de Pessoa?
Delicada? Sapequinha?
Moça linda e muito boa ?
Era Soraya? Sereia?
Era Serena? Era Liz?
Deusa Maia? Lua Cheia?
Escorpiana feliz?
Era Sagitariana?
Virginiana indecisa?
Aline? Lana? Luana?
Fogo? Brasa? Vento? Brisa?
Era Loura gostosinha?
Toda pura? Toda boa?
Toda sua? To facinha?
To sozinha? To à toa?
Pepita? Dita? Paquita?
Nikita? Rabo de Saia?
Silvana? Sarita? Rita?
Catita? Rata de Praia?
Psicóloga? Miudinha?
Fisiogatinha? Pantera?
Encantada? Malukinha?
Megera? A Bela da Fera?
O nick dela qual era?
Gostava de praia.
De vodcka.
De misturar champagne com coca-cola...
Ela era pura ousadia...
E enquanto ela teclava me dizia:
Fumava muito...
(Ou detestava o cheiro do cigarro?)
As vezes me dava assunto...
Outras vezes só queria tirar sarro...
Dizia, quase abusada,
Que era atrevida, atirada,
Desaforada, sacana...
Às vezes escancarada...
As vezes muito mais do que escrachada...
Outras, a Gata Dengosa da semana...
Não se apegava aos gatos que atraia...
Gostava de seduzir, e se gabava
De conquistar os homens que queria
E de curtir quando ela os desprezava...
Não se envolvia jamais quando teclava.
Jurava que ali no chat não mentia.
Mas ela também não acreditava
Em nenhuma palavra do que lia.
E o que dizia, enquanto chatiava,
Era somente a coisa que sentia.
Não percebia e nem se incomodava
Quando ela magoava ou ofendia.
Quando ela seduzia e desprezava,
Quando ela machucava. E garantia
Que nem ligava
Se alguém sofria
Com a displicência com que ela magoava...
E enquanto, distraída, ela teclava,
Ela dizia
Que ela era assim:
Absoluta,
Única,
Exuberante,
Quase encantadora,
Incompreensível,
Misteriosa,
Bela,
O equilíbrio entre a boa
E a pecadora...
Pantera,
Fera,
Mulher sedutora,
Cheia de dengo e malicia e muita manha...
Potranca,
Lânguida,
Avassaladora,
E a voz feito a de um aço quando arranha...
E enquanto teclava,
Contava...
E enquanto contava
Jurava que não mentia...
Pena que ela não gostava
De poesia...

3. Das coisas que o nick era

I
Era silencio. As luzes apagadas.
Somente a tela do PC acesa...
Um gosto de sereno nas calçadas...
Biscoito e café frio sobre a mesa.

Ana Maria, só, ali, teclava...
Reinventava os tristes dias seus...
Fugia da vidinha que levava...
Brincava, na telinha, que era Deus...

Faria dezessete em fevereiro...
Ela trazia desde o nascimento
Alguma coisa ruim que ela escondia...

Brincava de estar bem o tempo inteiro.
Fazendo desfazer seu sofrimento
E a dor que devorava Ana Maria...

II
Faria dezessete em fevereiro...
Trazia um coração descompensado...
Que quase era maior que o peito inteiro...
Seu caso era bastante complicado.

Fariam dezessete essa menina
E a bala de oxigênio do seu lado...
E os comprimidos de Digoxina...
E o coração tão grande e delicado...

E a longa espera, quase que absurda,
Da cura que não vinha, e tão sonhada,
Da dor que parecia não ter fim...

E a longa espera, silenciosa e muda,
E a longa espera, tímida e calada
É que fazia Ana Maria assim:

III
Brincando de inventar felicidades...
Criando as suas próprias fantasias...
Podendo refazer facilidades
Que a vida seqüestrava dos seus dias...

Fugindo de encarar realidades...
Tentando a contramão das corredeiras...
Tomando um banho de banalidades...
E se fartando em suas brincadeiras...

Ana Maria, lúcida, lutava,
Sobrevivia a si, quando teclava,
E assim dessa maneira, resistia...

Ana Maria, em sua dor imensa,
Seguia, leve, em meio à noite densa,
Sem perceber a dor que a consumia...

4. Do nick que o nome usava...

Não era Carol, Carina,
Carolina, Cora, Cris,
Nem Kalu, nem Kelly, Keila,
Nem Luisa, nem Lais,
Nem Boazuda, Boazinha,
Mariinha, Marilu,
Nem era Kátia, nem Candy,
Nem Corina, nem Caru,
Não era Mara, Mariana,
Nem Camila, nem Cassinha,
Eu quase posso lembrar-me do nome que o nick tinha...
Era pequeno,
Suave,
Era feito assoviar uma canção,
Tinha um brilho delicado,
Um bom-bocado
Todo feito de pedaços variados de emoção...
Era todo suavezinho,
Feito o voz de passarinho...
Feito rastros de paixão...
Era silencio,
Barulho,
Pecado,
Absolvição...
O nome que o nick usava
(Porque o nick precisava
De um nome enquanto teclava)
Era apenas
Nada mais que
Coração...

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