Carta a uma mãe
Prezada senhora,
Bom dia.
Permita-me usar um pouco de poesia
Para uma quase nem tão breve assim explicação:
Se um dia desses acontecer
De eu estar na Emergência de plantão,
E nesse dia você trouxer a mim seu filho
Com febre alta de pneumonia
E tosse cheia de estertoração,
E ainda palidez, taquisfigmia,
Inapetência e desidratação,
Se nesse dia eu, respeitosamente,
Chamar você pelo nome,
Mas não por um nome qualquer,
Por qualquer nome,
Mas pelo seu próprio nome e sobrenome,
Pronunciado com exatidão,
Letra por letra, palavra por palavra,
Pronuncia exata e sem abreviação,
E se nesse dia dessa pneumonia
Em que eu chamar você, sem falhas de edição,
Pelo seu próprio nome, e por extenso,
Sem erros de dicção,
Bem nesse dia, e justo nesse dia,
Por pura estupidez e falta de noção,
Eu não olhar para o medo do seu rosto
E nem perceber o tremor da sua mão,
E não notar seu esposo aflito e atonito
Ou a lágrima nos olhos do outro irmão,
Não entender seu coração desabalado,
Nem me abalar com sua tensão,
Se nesse dia de pneumonia
Voce chorar
E eu nem notar a razão,
E mesmo que eu chame você pelo nome
E sobrenome, sem abreviação,
E mesmo que eu acerte na receita,
No diagnostico,
E na segurança com que eu avaliar
A possibilidade de internação,
Prezada Senhora, daqui eu pediria
Que nesse dia
Você não acreditasse na minha adequação,
Na minha fala burocraticamente fria,
Na minha frieza cheia de educação,
Na minha imperdoável hipocrisia,
Na minha falsa dedicação...
A educação inventou a poesia,
Mas o verso é da seguinte opinião:
O poema não é feito das suas rimas,
O poema é feito da sua empolgação...
Palavra pronunciada e não sentida
É como palavra sem vida,
É vida sem pulsação...
Então, nesse dia.
De tratamento politicamente correto,
Minha senhora,
Eu peço agora,
Não acredite em mim não:
Minha alma sofre de paresia,
De anestesia o meu coração,
Por isso as vezes a palavra fria,
Como uma caixa vazia,
Como se traduzisse solidão...
Mas se de uma outra vez,
Num outro dia,
Por conta de um episódio de disenteria
A gente se encontrar novamente e ai então
Eu perceber sua lagrima abafada
E o pavor que você tem de infecção,
E eu me sensibilizar com a sua voz pesada,
Trancada e gaguejada com razão,
Se eu esperar pra que você se acalme
Antes de continuar a orientação,
E tentar explicar a você com calma os riscos
No caso de uma desidratação,
Levar você até a Enfermaria,
Apresentar a você a Dra. Maria,
Nossa chefe do setor de Nutrição,
Se nesse dia de disenteria
Eu não deixar você até que você sorria,
E acalme a sudorese e a agitação,
Posto que uma boa conversa, segundo a medicina,
Faz mais efeito às vezes que a nifedipina
Para a hipertensão,
E se eu tratar seu esposo com respeito,
E o irmãozinho do seu filho com atenção,
Se eu perceber a lágrima do seus olhos,
Se eu me incomodar com o tremor da sua mão,
Se eu não disser: “para de bobagem,
Parece criança com medo de injeção”
E ao invés disso eu repetir: “Coragem,
Viver é um teste de superação”...
Se nesse dia eu espantar seus medos
E contornar sua preocupação,
Se nesse dia, minha senhora,
Por conta certamente da danada da psora
Eu fugir da linha
E acabar chamando você de Mãezinha
Ou de qualquer outro nome que a equivalha,
Perdoa essa minha falha imperdoável,
Supera esse meu costume incorrigível,
E livra-me da condenação inapelável,
Eu sou terrível...
E acredite:
Justo nesse dia,
Ainda que falte nome e sobrenome,
Ainda que eu atropele a dicção,
E troque a preposição pelo pronome.
Não acredite nessa desatenção.
É que não prestei atenção no papel, minha senhora,
Prestei atenção no seu coração...
E ai toda Maria, toda Mara,
Toda Sebastiana e toda Nelly,
Toda Cristal, toda Dulce e toda Lara,
Não são Melissa pra mim, nem são Michelle,
E não importa se morena ou loura,
E tanto faz o seu tom de pele:
É a mesma mulher desesperada
Que independente da forma como é chamada
Quer ser afagada, acolhida,
E bem tratada,
E mais do que ser bem tratada, ser ouvida,
E mais do que ser ouvida
Ser cuidada...
Tudo mais em verdade são ruídos, bem disse Carlos Drummond,
Tudo mais são como musica sem som.
São conjecturas pra sábios,
São páginas para alfarrábios
E compêndios de psicologia...
Tudo mais em verdade são palavras
Para enriquecer as teses de doutorado
Que vêem pecado onde não há pecado
E contaminam o cuidado com teoria...
Por isso, minha senhora,
Se algum dia,
Por pneumonia ou disenteria,
Eu atender seu filho no plantão,
Presta atenção nos meus olhos
E repara pra onde volto minha atenção:
Se para os dados formais do prontuário
Ou para as vozes do seu coração,
Se pra seu nome correto e sobrenome
Ou pra seu medo de infecção,
Se pra sua vida e pra vida de seu filho
Ou se pras teses de dissertação...
Presta atenção nos meus olhos nesse dia
E tire a sua própria conclusão...
Tudo mais, como o Drummond diria,
São como concha vazia...
Coisa sem cor nem significação...
Prezada senhora,
Bom dia.
Permita-me usar um pouco de poesia
Para uma quase nem tão breve assim explicação:
Se um dia desses acontecer
De eu estar na Emergência de plantão,
E nesse dia você trouxer a mim seu filho
Com febre alta de pneumonia
E tosse cheia de estertoração,
E ainda palidez, taquisfigmia,
Inapetência e desidratação,
Se nesse dia eu, respeitosamente,
Chamar você pelo nome,
Mas não por um nome qualquer,
Por qualquer nome,
Mas pelo seu próprio nome e sobrenome,
Pronunciado com exatidão,
Letra por letra, palavra por palavra,
Pronuncia exata e sem abreviação,
E se nesse dia dessa pneumonia
Em que eu chamar você, sem falhas de edição,
Pelo seu próprio nome, e por extenso,
Sem erros de dicção,
Bem nesse dia, e justo nesse dia,
Por pura estupidez e falta de noção,
Eu não olhar para o medo do seu rosto
E nem perceber o tremor da sua mão,
E não notar seu esposo aflito e atonito
Ou a lágrima nos olhos do outro irmão,
Não entender seu coração desabalado,
Nem me abalar com sua tensão,
Se nesse dia de pneumonia
Voce chorar
E eu nem notar a razão,
E mesmo que eu chame você pelo nome
E sobrenome, sem abreviação,
E mesmo que eu acerte na receita,
No diagnostico,
E na segurança com que eu avaliar
A possibilidade de internação,
Prezada Senhora, daqui eu pediria
Que nesse dia
Você não acreditasse na minha adequação,
Na minha fala burocraticamente fria,
Na minha frieza cheia de educação,
Na minha imperdoável hipocrisia,
Na minha falsa dedicação...
A educação inventou a poesia,
Mas o verso é da seguinte opinião:
O poema não é feito das suas rimas,
O poema é feito da sua empolgação...
Palavra pronunciada e não sentida
É como palavra sem vida,
É vida sem pulsação...
Então, nesse dia.
De tratamento politicamente correto,
Minha senhora,
Eu peço agora,
Não acredite em mim não:
Minha alma sofre de paresia,
De anestesia o meu coração,
Por isso as vezes a palavra fria,
Como uma caixa vazia,
Como se traduzisse solidão...
Mas se de uma outra vez,
Num outro dia,
Por conta de um episódio de disenteria
A gente se encontrar novamente e ai então
Eu perceber sua lagrima abafada
E o pavor que você tem de infecção,
E eu me sensibilizar com a sua voz pesada,
Trancada e gaguejada com razão,
Se eu esperar pra que você se acalme
Antes de continuar a orientação,
E tentar explicar a você com calma os riscos
No caso de uma desidratação,
Levar você até a Enfermaria,
Apresentar a você a Dra. Maria,
Nossa chefe do setor de Nutrição,
Se nesse dia de disenteria
Eu não deixar você até que você sorria,
E acalme a sudorese e a agitação,
Posto que uma boa conversa, segundo a medicina,
Faz mais efeito às vezes que a nifedipina
Para a hipertensão,
E se eu tratar seu esposo com respeito,
E o irmãozinho do seu filho com atenção,
Se eu perceber a lágrima do seus olhos,
Se eu me incomodar com o tremor da sua mão,
Se eu não disser: “para de bobagem,
Parece criança com medo de injeção”
E ao invés disso eu repetir: “Coragem,
Viver é um teste de superação”...
Se nesse dia eu espantar seus medos
E contornar sua preocupação,
Se nesse dia, minha senhora,
Por conta certamente da danada da psora
Eu fugir da linha
E acabar chamando você de Mãezinha
Ou de qualquer outro nome que a equivalha,
Perdoa essa minha falha imperdoável,
Supera esse meu costume incorrigível,
E livra-me da condenação inapelável,
Eu sou terrível...
E acredite:
Justo nesse dia,
Ainda que falte nome e sobrenome,
Ainda que eu atropele a dicção,
E troque a preposição pelo pronome.
Não acredite nessa desatenção.
É que não prestei atenção no papel, minha senhora,
Prestei atenção no seu coração...
E ai toda Maria, toda Mara,
Toda Sebastiana e toda Nelly,
Toda Cristal, toda Dulce e toda Lara,
Não são Melissa pra mim, nem são Michelle,
E não importa se morena ou loura,
E tanto faz o seu tom de pele:
É a mesma mulher desesperada
Que independente da forma como é chamada
Quer ser afagada, acolhida,
E bem tratada,
E mais do que ser bem tratada, ser ouvida,
E mais do que ser ouvida
Ser cuidada...
Tudo mais em verdade são ruídos, bem disse Carlos Drummond,
Tudo mais são como musica sem som.
São conjecturas pra sábios,
São páginas para alfarrábios
E compêndios de psicologia...
Tudo mais em verdade são palavras
Para enriquecer as teses de doutorado
Que vêem pecado onde não há pecado
E contaminam o cuidado com teoria...
Por isso, minha senhora,
Se algum dia,
Por pneumonia ou disenteria,
Eu atender seu filho no plantão,
Presta atenção nos meus olhos
E repara pra onde volto minha atenção:
Se para os dados formais do prontuário
Ou para as vozes do seu coração,
Se pra seu nome correto e sobrenome
Ou pra seu medo de infecção,
Se pra sua vida e pra vida de seu filho
Ou se pras teses de dissertação...
Presta atenção nos meus olhos nesse dia
E tire a sua própria conclusão...
Tudo mais, como o Drummond diria,
São como concha vazia...
Coisa sem cor nem significação...